A primeira pergunta que me fazem quando menciono que estudo aconselhamento é, invariavelmente, acerca de como a psicologia e o Cristianismo se relacionam. O assunto insiste em surgir, quer em conversas informais, aulas, ou discussões acadêmicas. A dúvida é válida, pois de cunho muito prático. “Minha mãe está depressiva. Posso levá-la ao psicólogo?” “Faço faculdade de psicologia. Devo largar?” “Estou tomando medicação para ansiedade. Estou pecando?”
Uma resposta completa a essa tensão demandaria um livro inteiro—provavelmente mais. Minha proposta com esse texto é simplesmente estabelecer algumas nuances que nem sempre são consideradas quando falamos de “psicologia.” Precisamos compreender a amplitude do termo debatido para que a conversa possa acontecer inteligivelmente—e, também, mais caridosamente. Não é questão de enrolação, mas de precisão.
Jay Adams utilizava, confessadamente, de uma retórica grosseira, do “nós contra eles”. Em um contexto em que as igrejas, em geral, terceirizavam o cuidado das pessoas, Adams enxergava sua estratégica polemista como justificável. Isso fica claro no relato histórico apresentado por David Powlison em sua dissertação de doutorado, mais tarde publicada sob o título “The Biblical Counseling Movement”. Anos depois, Powlison surgiu como o líder da segunda geração do movimento de aconselhamento bíblico. Algumas ênfases teológicas foram agregadas; outras práticas adotadas e adequadas. Adams usou a serra elétrica e o machado pra limpar o terreno. Powlison chegou para aparar o jardim, cuidar dos detalhes, plantar as flores.
Enquanto isso, o tempo passou e o estudo da psicologia também mudou. Diante de um novo cenário, então, Powlison se propôs a lidar com a questão da integração de maneira mais diplomática, precisa e detalhada. Seu espírito manso e seu discurso sempre amoroso contrastavam com o que antes se via na argumentação polêmica do início do movimento. O restante deste texto apresenta um exemplo disso, retirado do capítulo de sua autoria na obra “Psychology & Christianity: Five Views”.
Para Powlison, o uso do termo “psicologia” comunica tanto quanto “política”, “religião”, “filosofia”. São palavras abrangentes e que podem ser entendidas de diversas maneiras. São muitas e variadas as filosofias, religiões e posições políticas—e também as “psicologias”. Para facilitar, Powlison divide o campo semântico do termo “psicologia” em seis.
Psicologia 1: Como você funciona
Seres humanos operam psicologicamente: com pensamentos, emoções, sentimentos, memórias, vontades, crenças, percepções, motivações, etc. Esse aspecto da psicologia diz respeito a nossa interação com situações da vida, como vivemos e funcionamos. É a psicologia per se. Ela equivale simplesmente a “você”. Nesse sentido, a fé cristã diz respeito à psicologia e é por isso que a Bíblia continua falando tão diretamente a nossa realidade ainda hoje.
Psicologia 2: Conhecimento do funcionamento humano
Psicologia, aqui, refere-se ao campo de estudo que busca organizar conhecimento com observações e descrições sistemáticas do funcionamento humano. É esse aspecto que faz os livros de psicologia tão interessantes. Pessoas que observam outras de perto por um longo período são capazes de prover ricas descrições das circunstâncias e experiências humanas. O sentido aqui é objetivo, observacional, e nisso podemos entender a psicologia como ciência de fato: a busca intencional e organizada do conhecimento. Para Powlison, nesse aspecto, a psicologia é útil ao Cristianismo em suas descrições e questões provocativas.
Psicologia 3: Diferentes teorias de personalidade
O terceiro sentido abrange os modelos de interpretação e explicação que buscam organizar as experiências e informações dos dois primeiros. Tais modelos avaliam os dados que são observados e descritos baseados em teorias antropológicas. Podemos tratá-los, também, como cosmovisões. Nesse sentido, a fé cristã é uma psicologia, já que fornece uma antropologia que permite a interpretação e explicação da experiência e funcionamento humanos. Isso porque o conhecimento do homem segue e depende do conhecimento de Deus. É justamente por isso que Agostinho, Tomás de Aquino, João Calvino e Jonathan Edwards são tão inspiradores quando se trata da psicologia humana. A epistemologia cristã, partindo do Deus que se revela, contrasta aí com outros modelos.
É possível também entender, a partir deste ponto, como muitos cristãos acabam por adotar modelos distintos em alguns detalhes, dependendo de nuances doutrinárias e aspectos teológicos que por vezes variam. Por exemplo, o conceito de “imagem de Deus” é entendido de algumas maneiras diferentes no mundo da teologia, o que pode resultar em variações no que se entende como um modelo bíblico de personalidade. Mais uma vez, a antropologia adotada acaba ditando a interpretação da realidade da experiência humana. E nisso, a psicologia é entendida de forma mais subjetiva, podendo contradizer ou competir com as Escrituras—ou também emergir a partir dela.
Psicologia 4: Aplicações práticas à psicoterapia
O quarto aspecto diz respeito à implementação prática dos modelos interpretativos referidos no terceiro sentido; são as metodologias adotadas. Se a antropologia informa o modelo interpretativo, pode-se dizer que fé cristã informa uma “psicoterapia”, no cuidado e na cura da alma—assim como informa a pregação e a adoração. É essa convicção que levou grandes figuras da história da igreja a proverem instrução tão prática para o cuidado de pessoas—como Gregório Magno, Richard Baxter e Bonhoeffer. De acordo, psicoterapia não é uma prática neutra, meramente técnica. Ela envolve valores interpretativos a partir dos quais são desenvolvidas práticas e estratégias para facilitar a mudança de crenças, comportamentos, emoções, sentimentos, valores, etc. Conforme Powlison ensina, podemos ser gratos quando terapeutas seculares (que Freud chamou de “pastores seculares”) providenciam algum bem por graça comum—como impedir um suicídio, adoçar um casamento ou levar um alcóolico à sobriedade. A competência de outras práticas psicoterápicas é capaz de nos estimular e desafiar. Mas precisamos manter em vista que a missão da igreja vai além.
Psicologia 5: Um sistema de organização de profissionais e instituições
Trata-se, aqui, da psicologia como abrangendo sistemas educacionais, organizações certificadoras, bancas de examinação e licenciamento, clínicas, hospitais, leis e sistemas jurídicos, e redes de referência. É o que muitos chamam de “sistema de saúde mental”, envolvendo profissionais e organizações que mediam as teorias e modelos terapêuticos a partir de uma “localização” institucional e física. Na medida que as instituições mediam teorias seculares que contradizem a fé cristã, elas competem, por assim dizer, com a igreja—a instituição a partir da qual o modelo evangélico de cura da alma é mediado.
Psicologia 6: Um ethos
Esse sentido diz respeito ao tipo de pensamento prevalente na cultura, um zeitgeist. Usamos esse sentido quando falamos de psicologia popular. A linguagem da psicologia é cada vez mais presente na “boca do povo” e nos livros das prateleira mais abaixo. A referência, aqui, é ao “espírito do nosso tempo”, que varia como o clima, influenciando o pensamento de milhões—bilhões, talvez. Aqui o contraste com o Cristianismo é multi-perspectivo, pois ocorre em diferentes frentes e níveis. A comparação é até difícil de ser estabelecida diante da subjetividade. Mas é justamente neste contexto em que a igreja é chamada a ministrar a mensagem de Cristo.
Para concluir
Todos os seis sentidos se relacionam entre si, mas revelam diferentes níveis do que queremos dizer quando falamos em psicologia: dinâmica interna da pessoa, informações observáveis, teorias explicativas e interpretativas, práticas de intervenção e cura/cuidado, instituições sociais e valores e crenças culturais. Em geral, vemos que a resposta acerca do relacionamento entre o cristianismo e a psicologia depende de definições melhores e mais detalhadas. Se fizermos isso, talvez comecemos a erradicar alguns estigmas acerca de conselheiros bíblicos e psicólogos cristãos, e passemos a avaliar ideias e práticas específicas com base nas lentes interpretativas das Escrituras e a partir do Deus que salva, em quem cremos.
Se entendemos que a Bíblia estabelece o fundamento da nossa cosmovisão e que teologia é a fé buscando (continuamente) entendimento, então nossas interações e avaliações de ideias precisam ocorrer de maneira paciente, dependente e graciosa. Só assim conseguiremos superar as conversas cruzadas e passar a avaliar ideias com especificidade e precisão. No corpo de Cristo, o propósito é o mesmo. Quem reina é o Amor.
_______
Texto escrito por Lucas Sabatier M. Leite e originalmente publicado em seu blog pessoal. Republicado mediante autorização.
*Os conceitos e posicionamentos emitidos nos textos aqui publicados são de inteira responsabilidade dos autores originais, não refletindo, necessariamente, a opinião da direção e membros da ABCB em sua totalidade.
Comments