A forma como entendemos um problema sempre determinará como entendemos a ajuda para o problema. Isto é uma verdade óbvia quando falamos sobre a natureza dos vícios. Enquanto os modelos dominantes de aconselhamento sobre vícios enxergam o problema a partir da perspectiva de doença ou de escolha, a Bíblia oferece uma perspectiva mais robusta. Nas Escrituras, os vícios são vistos como “escravidão voluntária”.<1>
A experiência do vício se parece tanto com o voluntarismo quanto com a escravização. Um indivíduo viciado se sente ao mesmo tempo culpado e incapaz de parar, responsável e fora de controle. Como explicar a disparidade entre esses dois sentimentos, mesmo entre essas duas realidades aparentes? O mundo não tenta navegar nesse terreno. Mais frequentemente, a psicologia moderna simplesmente oferece uma explicação que enfatiza uma ou outra dessas realidades. O modelo da doença diz que você é uma vítima, ligando o problema à sua biologia falida. Você não escolheu seu vício; você é apenas um escravo disso. O modelo de escolha, por outro lado, afirma que o vício é uma decisão voluntária ou intencional do uso/abuso de drogas ou álcool. Cada visão tem pontos fortes e fracos, mas é insuficiente como uma explicação abrangente para o vício.
Alguns cristãos têm dificuldades com essa definição de vício. Nós enfatizamos tanto o princípio da culpabilidade moral que relutamos em aceitar qualquer noção que conflite com essa verdade. Portanto, estamos mais inclinados a ver o vício como um fracasso de uma pessoa moralmente fraca, do que a aceitar que algumas formas de pecado criam um nível de servidão difícil de se quebrar. Mas os vícios são como escravidão, e a experiência vivida do viciado revela isso. Por exemplo, Jéssica não estava criando desculpas quando me disse que não queria beber uma garrafa inteira de Jim Beam naquela noite, embora ela soubesse que iria beber. Ela não conseguiu se conter. Ela se sentiu presa. Kevin sabia que, no segundo em que tivesse dinheiro, compraria drogas; era a principal razão pela qual sua mãe mantinha o controle de todas as suas finanças. Ele não conseguia fazer a coisa certa. A escravidão é uma descrição adequada dessas experiências.
A Bíblia demonstra compreender esse sentimento de servidão e, ao mesmo tempo, nunca deixa de nos responsabilizar moralmente por nossas ações. Somos agentes morais e a Bíblia nos trata assim, mesmo diante de hábitos viciantes. Ed Welch ressalta que a embriaguez serve como um protótipo para todos os vícios da Bíblia, e é sempre tratada como um pecado, nunca uma doença. Ele escreve:
A embriaguez é contra Deus e sua lei. A Bíblia é firme nesse ensino e rígida em suas ilustrações. Noé (Gênesis 9.18–27), Ló (Gênesis 19.30–38), Elá (1 Reis 16.9) e Nabal (1 Samuel 25.36) todos retratam a tolice moral de ser controlado pelo álcool.<2>
O Novo Testamento continua com essa mesma descrição ao incluir embriaguez em uma série de outras atividades imorais: imoralidade sexual, roubo, ganância e egoísmo (ver 1 Coríntios 5.11; 6.9–10; Gálatas 5.19–21). Certamente, nosso mundo também possui todos os tipos de rótulos psicológicos para esses problemas (dependência sexual, cleptomania, narcisismo, etc.), mas, sob a autoridade da Palavra de Deus, devemos reconhecer que cada um desses atos vai contra a natureza de Deus. Esses atos são uma recusa em submeter-se ao amoroso senhorio de Deus. A embriaguez é, em última análise, um “problema de senhorio”, diz Welch.<3> Em outras palavras, há um componente idólatra nos nossos vícios.
A igreja cristã não deveria ter problemas para aceitar essa realidade. O filósofo Kent Dunnington considera a doutrina evangélica do pecado como um ponto de conexão.<4> Nossa doutrina observa três níveis de pecado. Por um lado, agimos pecaminosamente. A Bíblia também reconhece que podemos desenvolver padrões de pecado em nossas vidas—o que João quer dizer quando fala daqueles que “praticam o pecado” (1 João 3.4–10). Podemos falar disso em termos de hábitos pecaminosos. Finalmente, a Bíblia revela que cada um desses dois primeiros níveis acontece principalmente porque somos pecadores. É a isso que os teólogos se referem quando falam sobre pecado original—a categoria de pecaminosidade que tem a ver com a nossa própria natureza (Efésios 2.3). A Bíblia nos diz que não apenas fazemos coisas pecaminosas, mas que somos pecadores.
Por um lado, somos moralmente responsáveis diante de Deus pelo que fazemos. Por outro lado, estamos presos, escravos do pecado (Romanos 6.20). Paulo diz que, fora de Cristo, estamos mortos em nossas transgressões e pecados (Efésios 2.1) e que não podemos mudar essa realidade sobre nós mesmos. Antes, devemos ser “vivificados” em Cristo (v. 5). Nossa teologia reconhece essa dualidade de responsabilidade moral e servidão. Não precisa ser um ou outro.
Nossa teologia nos ajuda a entender o vício de uma maneira mais abrangente. Os vícios, dentro de uma cosmovisão bíblica, são melhor descritos como “escravidão voluntária”. O valor dessa terminologia é que ela reconhece a responsabilidade individual e a natureza involuntária de um hábito. Ou seja, tomamos decisões para entrar em certos comportamentos, e esses comportamentos podem, eventualmente, tornar-se algo de segunda natureza para nós.<5> Participamos de certas práticas com frequência suficiente para que formulem uma resposta automática quando acionadas. A Bíblia descreve essa dupla realidade quando fala de pecado. Ambos reconhecem que não devemos “deixar o pecado reinar”, e que o pecado tem a capacidade de “reinar” em nossos corpos (Romanos 6.12). Paulo pode falar de “apresentar-se” como “escravo obediente”, e de ser “escravo daquele a quem você obedece” (Romanos 6.16). No capítulo sete de Romanos, ele até fala de seu próprio desejo de fazer o certo e, no entanto, também de sua persistência em fazer exatamente o que odeia. A Bíblia ensina esse entendimento diverso dos vícios e, portanto, a igreja também deve adotá-lo.
A Bíblia não é ingênua sobre a natureza dos vícios. Deus nos considera moralmente responsáveis por nossas ações, mas também reconhece as maneiras pelas quais escolhas pecaminosas podem nos escravizar. Dentro da cosmovisão bíblica, então, os vícios são melhor descritos como “escravidão voluntária”.
Questões para reflexão
Quais aspectos desta definição você considera úteis? Algum aspecto desta definição lhe parece preocupante?
Como essa definição mais detalhada pode ajudá-lo a cuidar bem dos que sofrem de um vício?
Esta definição é construída a partir da doutrina cristã do pecado em geral. Existem outras doutrinas que o ajudariam a desenvolver uma definição robusta de vício?
<1> Foi o Dr. Edward Welch que apresentou essa descrição de vício. Welch desenvolve a ideia e apresenta um argumento convincente em seu trabalho, Vícios: Um Banquete no Túmulo (São Paulo: Nutra Publicações, 2009) , e em seu manual, Crossroads: A Step by Step Guide Away from Addiction (Greensboro: New Growth Press, 2008).
<2> Vícios, 43.
<3> Ibid., 45.
<4> Kent Dunnington, Addiction and Virtue (Downers Grove: IVP, 2011).
<5> Muitas pessoas estão escrevendo sobre o poder dos hábitos para moldar nossas vidas. Tornou-se uma categoria popular tanto na escrita teológica quanto em literaturas não-ficcionais. Veja James K.A. Smith, Você é Aquilo que Ama (São Paulo: Vida Nova, 2017); Charles Duhigg, O Poder do Hábito: Por que Fazemos o que Fazemos na Vida e nos Negócios (São Paulo: Objetiva, 2012); David Matthis, Habits of Grace (Wheaton: Crossway, 2016); Richard O'Connor, Rewire (Nova York: Plume, 2015); Philip Nation, Habits of Our Holiness (Chicago: Moody, 2016).
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Este post, de autoria de Dave Dunham, foi originalmente publicado no blog da Biblical Counseling Coalition. Traduzido por Gustavo Santos e revisado por Lucas Sabatier. Republicado mediante autorização.
*Os conceitos e posicionamentos emitidos nos textos aqui publicados são de inteira responsabilidade dos autores originais, não refletindo, necessariamente, a opinião da direção e membros da ABCB em sua totalidade.
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